COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA. RETROVENDA.

Íntegra:

Vistos.

O Oficial do 8° Serviço de Registro de Imóveis, a requerimento de Gabriel Mas Santacreu e sua mulher, suscita dúvida, aduzindo que adiou o registro de contrato particular de compromisso de compra e venda referente ao apartamento 72, do Edifício Lígia, localizado na Rua Ituxi, 99 porque nele se encerra pacto de retrovenda, estipulado em sua cláusula 3ª, condição resolutiva possível apenas nas transmissões definitivas. Ademais, se interpretada como cláusula de arrependimento, conflitaria com a irretratabilidade e irrevogabilidade ajustadas. Impossível a cindibilidade do título, viável apenas quando este objetiva negócios distintos.

Os suscitados ofertaram impugnação à fls. 30/35, asseverando, com fundamento na obra de Orlando Gomes, que a cláusula de retrovenda, em realidade, retrata um pacto de resgate pela compromissária compradora que não necessitaria de instrumento público e assim poderia ser interpretada pelo oficial. A irrevogabilidade e irretratabilidade inseridas no título, em nada prejudicam o contrato celebrado, além do que não contitui atribuição do registrador interpretar cláusulas do contrato. Argumenta ainda, que, sendo nula a cláusula de retrovenda não invalida o instrumento em seu todo, que pode ter acesso ao registro. Por fim, reafirma a possibilidade de cindibilidade do título.

Em parecer de fls. 37/39, o nobre Dr. Promotor de Justiça de Registros Públicos opinou pela improcedência da dúvida, fundamentando-se no princípio insculpido no artigo 85 do Código Civil Brasileiro, no sentido de que na interpretação dos contratos se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal. Assim, a cláusula de retrovenda deve ser interpretada como condição resolutiva expressa, não havendo conflito com sua irretratabilidade e irrevogabilidade.

É a síntese do necessário.

Decido.

Os suscitados afirmaram instrumento de compromisso de compra e venda e com pacto adjeto de retrovenda com Maria de Lourdes Bissi Ambrosio, em 17.09.96, tendo por objeto o apartamento n. 72 e 3 (três) vagas na garagem do Ed. Lígia, localizado na Rua Ituxi, 99.

Por sua cláusula 3ª firmaram o pacto de retrovenda e a transferência da posse e domínio ocorreriam em 18.12.1996, caso não se concretizasse o pacto de retrovenda.

Não se trata aqui de se interpretar cláusula contratual o que, em tese, fugiria da atribuição do registrador.

A este cabe, sim, o exame da legalidade intrínseca formal do título, obstando aquele que possui cláusula incompatível com a natureza do instrumento, ainda mais quando a forma usada, implica em não recolhimento do Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis.

O culto Magistrado Aroldo Mendes Viotti, ao proferir sentença no processo de dúvida n° 07/86, assim se expressou: “A ideia da interferência do Estado no primado do consensualismo, na órbita das relações jurídicas privadas, é sempre menos simpática ou passível de repulsa a quem quer que esteja consciente da relevância do substrato liberal de nossas ordem e cultura jurídicas. Necessário é, porém, compreender-se que o arcabouço formal das normas e princípio registrários traduz, em seu campo de atuação, garantia do exercício da autêntica liberdade de contratar, que não pode ser imune às restrições da ordem pública.”

A retrovenda está disciplinada na Seção II que cuida das cláusulas especiais à compra e venda e está inserida no capítulo I do Título V, do Código Civil que trata do contrato de compra e venda.

Consubstancia cláusula adjeta à compra e venda do imóvel.

Desfigurada fica sua inserção no compromisso de compra e venda.

O Professor Silvio Rodrigues em seu livro “Direito Civil – Dos Contratos e Das Declarações Unilaterais de Vontade” – Saraiva – 1995, analisa a retrovenda e ensina:

“Através da cláusula de retrovenda, o vendedor se reserva o direito de recobrar, em certo prazo, o imóvel que vendeu, restituindo o preço, mais despesas feitas pelo comprador (CC art. 1140). Desse conceito se dessume sua natureza jurídica, pois, se verifica que a retrovenda é um pacto acessório, adjecto à compra e venda, através do qual o vendedor guarda a prerrogativa de resolver o negócio, se lhe aprouver, devolvendo ao comprador o preço e mais gastos quem, por força do negócio, este teve que desembolsar” (grifamos).

“A retrovenda ou pactum de retrovendendo é a cláusula adjeta à compra de venda (RT 614/179, 590/231, 528/231, 524/100 e 452/62), pela qual o vendedor se reserva o direito de reaver, em certo prazo, o imóvel alienado, restituindo ao comprador o preço, mais as despesas por ele realizadas, inclusive as empregadas em melhoramentos do imóvel (CC. art. 1140, 178, parágrafo 2º)” (grifamos), (in “Curso de Direito Civil Brasileiro” – Maria Helena Diniz, Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais- Ed. Saraiva – pág. 146).

O Professor Mario Aguiar Moura em artigo publicado na Revista dos Tribunais 684, à pág. 29 nos ensina:

“4. A retrovenda é incompatível com a promessa de compra e venda. 4.1. Não obstante não se deve ver uma retrovenda na cláusula sub censura do acórdão, data máxima venia, o julgamento oferece ensejo a que se examine a viabilidade da inserção da retrovenda na promessa de compra e venda. À luz do direito escrito, cf. art. 1140 do CC, depara-se o intérprete com a adequação da cláusula tão-somente à compra e venda. E a razão é bastante clara. Na retrovenda faz-se necessário que o vendedor transfira o domínio, desde logo, ao comprador. É certo que este ficará com a propriedade resolúvel, porque sujeita à condição resolutiva de sair do seu patrimônio para voltar ao do vendedor, se este exercitar o direito de retrato. Mas a migração do domínio é essencial. Só se pode recomprar o que se vendeu. De outro lado, não exercido o direito de resgate a propriedade fica onde já estava, agora definitivamente.

4.2. É verdade que há dissídio, assim na doutrina, como na jurisprudência. Aliás, embora em menor alcance, há mesmo os que propugnam pela transferibilidade do domínio por via da promessa de compra e Venda. Todavia, é de fácil constatação que predomina, no Direito pátrio, o entendimento de que a promessa de compra e venda constitui obrigação de fazer, justo porque tem por objeto o contrato definitivo de compra e venda. No meu citado livro, ao cuidar do conceito da promessa de compra e venda, assinalo: “Para mim e para a maioria dos que têm versado a matéria, a promessa de compra e venda é contrato preliminar que tem como objeto especifico o contrahere futuro, qual seja a celebração do contrato definitivo ou prometido: a compra e venda. Pouco importa que a vontade do promitente vendedor possa ser substituída pela sentença judicial que produz efeito do contrato definitivo. A promessa desencadeia o processo de transferência do domínio” (ob. cit. p. 41).

4.3. Mestre Pontes de Miranda, em seu monumental Tratado, 39/67, parágrafo 4.295, dilucida, a respeito da retrovenda: É obvio que o primeiro pressuposto é a compra-e-venda. Há de ter havido venda para que possa haver retrovenda. O segundo é a reserva, i. é o que se tira, pelo pacto, à venda, há venda, menos nisso; de modo que o comprador, recebendo o bem imóvel se submete à reserva, portanto ao direito formativo gerador em favor do vendedor.”

“Compromisso de compra e venda Cessão de Direitos. Cláusula de retrovenda inadmissível. Nulidade de escritura.

A cláusula de retrovenda, por ser exclusiva dos contratos de compra e venda de bens imóveis, de acordo com a lei substantiva civil (art. 114 do CC), não pode, sob pena de nulidade, ser inserida em contrato de cessão de direitos” (TJPR – Ap. 1091/83 – Curitiba – 2ª Cam. – RT 590/231).

Portanto, à vista dos ensinamentos doutrinários, a retrovenda só pode constituir-se em cláusula adjeta à compra e venda; e não em compromisso de compra e venda.

O domínio tem que ser transmitido.

No título cujo registro foi adiado o domínio será transmitido posteriormente, caso o contrato não se resolva.

Conflitam ainda as cláusulas de retrovenda e de irretratabilidade e irrevogabilidade.

A cindibilidade do título para efeito de registro, no caso não pode ser aceita.

No mínimo teria que haver anuência da promissária vendedora que manifestou a vontade de recompra do imóvel e pretendeu ver o título registrado em sua integra.

Isto posto, julgo PROCEDENTE a dúvida, cumprindo-se o disposto no artigo 203, I, da Lei 6.015/73.

São Paulo, 23 de dezembro de 1996.

ASDRUBAL NASCIMBENI.

Juiz de Direito.

Acórdão.

Ementa.

1. Registro de Imóveis – Dúvida – Negócio rotulado de promessa de venda e compra, com cláusula de retrovenda – Natureza efetiva de novação sob condição resolutiva – Negócio que gera somente direito de crédito e não constitui título hábil para criação de direito real – Registro inviável – Recurso improvido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N° 40.017-0/0, da Comarca da CAPITAL, em que são apelantes GABRIEL MAS SANTACREU e sua mulher ARLENA CHAVES SANTACREU e apelado o OFICIAL DO 8°CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS da Comarca.

ACORDAM os Desembargadores do Conselho Superior da Magistratura, por votação unânime, em negar provimento ao recurso.

Cuidam os autos de dúvida suscitada pelo Oficial Delegado a requerimento dos ora apelantes, em que se negou registro a instrumento particular de compromisso de venda e compra com pacto de retrovenda, fundado nos seguintes motivos: a) o pacto de retrovenda conflita com cláusula contratual de irretratabilidade e irrevogabilidade do negócio: b) o artigo 1.140 do Código Cível reserva o instituto da retrovenda para as transmissões definitivas; c) não há possibilidade de cisão do título, para registro parcial, porque se trata de negócio único.

Em sede de impugnação, sustentam os suscitados que há mero pacto de resgate, compatível com a irretratabilidade do negócio, caso não sobrevenha a condição resolutiva. Nada impede a aposição de pacto resolutivo em compromisso de venda e compra, não podendo o registrador se imiscuir na interpretação de cláusulas livremente firmadas pelas partes. Afirmam, mais, que, nula a retrovenda por vício de forma, é como se o pacto não existisse, devendo ser o contrato registrado de modo puro e simples. Acenam, finalmente, com a liberdade da criação de novos tipos contratuais no direito moderno.

A r. decisão atacada julgou procedente a dúvida, entendendo ser incabível a aposição de pacto de retrovenda em mero compromisso de compra e venda, exigindo o instituto a alienação definitiva do imóvel. Entendeu, mais, haver incompatibilidade com a cláusula de irretratabilidade e negou a cisão do título, para efeito de registro parcial, em razão da falta de anuência da compromitente-vendedora.

Reafirmaram os suscitados no recurso as teses levantadas na impugnação, com especial enfoque para a liberdade de criação de contratos atípicos e a criação de direito real pela inscrição do compromisso de venda e compra.

Contou o recurso com parecer favorável do Dr. Curador de Registro Públicos, que entendeu inexistir pacto de retrovenda, mas negócio atípico com possibilidade de resgate de dívida, ou, ainda que assim não seja, a possibilidade de cisão do título, com registro do contrato preliminar sem a cláusula viciada.

O Dr. Procurador de Justiça, por seu turno, opinou no sentido do improvimento do recurso, porque não cabe a retrovenda em contrato preliminar e a cisão do título provocaria a desfiguração do negócio pactuado pelas partes.

É o Relatório.

O título não está apto ao ingresso no registro imobiliário, embora por razões diversas daquelas argüidas pelo suscitante, ou postas na sentença atacada. Irrelevante discutir se cabe a aposição de pacto de retrovenda em compromisso de compra e venda, ou se há compatibilidade com cláusula de irrevogalibidade, ou, mais ainda, se pode ser cindido o título para registro.

Isso porque, como será abaixo exposto, gerou o negócio entabulado pelas partes simples direito de crédito, independentemente da eficácia da cláusula de retrato. Ainda que se admitisse sua validade, ou mesmo a cisão do título, não seria ele apto a gerar direito real.

Embora rotulado de compromisso de venda e compra, o teor do negócio jurídico entabulado pelas partes revela a existência efetiva de novação.

Basta ler as cláusulas 2° e 3° do contrato, para constatar que a parte denominada de “vendedora” era devedora da quantia de R$169.497,00 (cento e sessenta e nove mil, quatrocentos e noventa e sete reais), por força de alugueis vencidos no período de janeiro a agosto de 1996, relativos à locação de um “buffef”.

Havia, pois, obrigação pecuniária a ser solvida pela devedora. Convencionaram as partes, porém, a extinção da obrigação pecuniária e sua substituição por uma nova (obligatio faciendi), consistente da venda futura de um imóvel.

Não há, assim, falar em pagamento, porque se operou o desaparecimento do vínculo preexistente, mas sem a devida prestação. Houve apenas o nascimento de outro vínculo, criado com a finalidade simultânea de extinguir a primeira e fazer nascer uma segunda obrigação. É o que se denomina novação, a teor do artigo 999 do Código Civil.

O negócio foi próximo a uma dação em pagamento, com a sutil diferença (essencial para distinguir os negócios) de que não houve a entrega de uma coisa por outra, com imediata transferência do domínio do bem que é seu objeto, mas simples substituição de uma obrigação de dar (pecuniária) por uma nova obrigação de fazer (firmar contrato definitivo).

Não desnatura o negócio (novação) o fato da nova obrigação estar sujeita a condição resolutiva, ou direito potestativo de retrato, pois, realizada a conditio, a obrigação velha sobrevive, porque novação então não haverá (Caio Mário da Silva Pereira, Instituições De Direito Civil, 14° Edição, Forense, vol. II, pág. 163).

Têm integral razão os recorrentes ao sustentar que consagra o nosso direito obrigacional a ampla liberdade negocial (numerus apertus), podendo as partes contratar tudo aquilo que norma de ordem pública não proibir, ou atentar à moral e aos bons costumes.

Não se deram conta, porém, que o mesmo princípio não vigora na seara dos direitos reais. O poder de soberania sobre a coisa e a sua eficácia erga omnes criam a chamada obrigação passiva universal (jura excludendi omnes alios), mas, em contrapartida, subordinam os direitos reais ao princípio da tipicidade (numerus clausus). Não se justifica que se confiasse à iniciativa dos interessados a livre criação de instrumentos que podem causar séria pertubação no comércio jurídico e atingir terceiros que não vincularam ao negócio (cfr. João Matos de Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 8ª Edição Almeida, Coimbra, 1994, vol. I, págs. 191 e seguintes: Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª Edição Almeida, Coimbra, 1994, pág. 103).

Não se nega nesta sede, assim, eficácia “inter-partes” à novação sob condição resolutiva potestativa que, em tese, está apta a produzir todos os efeitos entre os contratantes. O que se veda é que constitua o negócio (direito de crédito) título para a criação de direito real, por vulnerar o princípio da tipicidade, que tem sua face operacional disciplinada no artigo 167 da Lei n° 6.015/73.

Irrelevante discutir, para efeito de qualificação do título no registro de imóveis, a validade do pacto de retrato em negócios distintos da venda e compra. Com ou sem o pacto, a novação, que gera direito exclusivo de crédito, não ingressa no assento imobiliário. Apenas convém lembrar a precisa lição do Ministro Moreira Alves, para quem, em tal caso, ‘não se tratará propriamente de retrovenda, mas de cláusula que encerra condição resolutiva potestativa (cuja aposição a negócio jurídico é lícita, desde que não vedada por lei especial), a que, em conseqüência, se aplicará a disciplina das condições resolutivas em geral e não as normas que regulam, especialmente, a retrovenda” (A Retrovenda, 2° Edição RT, pág. 116).

Em caso semelhante ao ora em exame, embora se tenha encarado o negócio como promessa de dação em pagamento e não como novação, como agora se faz deixou este Conselho Superior da Magistratura fixado que “o mero compromisso de entregar coisa no futuro não tem, sequer, o caráter de pagamento, por isso que inábil à geração de qualquer direito real”. E, mais, que “se a dação em pagamento é forma de transmissão da propriedade imóvel, comporta ser registrada; não, todavia, a mera promessa de dação em pagamento, que, além de não se prestar à transmissão de domínio, tampouco confere direito real ao seu beneficiário, porque não prevista, na lei civil, com tal atributo” (Apelação Cível n° 2272-0 da Comarca da Capital, Rel. Des. Bruno Afonso de André).

Em suma, o negócio jurídico da novação pode gerar aos recorrentes direito de crédito e execução específica para obtenção de sentença substitutiva da vontade da devedora em firmar o contrato definitivo. Somente então haverá título hábil para a criação de direito real e conseqüente ingresso no assento imobiliário.

Nestes temos, negam provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, com votos Vencedores, os Desembargadores YUSSEF SAID CAHALI, Presidente do Tribunal de Justiça e DIRCEU DE MELLO, Vice-Presidente do Tribunal de Justiça.

São Paulo, 15 de dezembro de 1997.

MÁRCIO MARTINS BONILHA.

Corregedor Geral da Justiça e Relator.

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